quarta-feira, 23 de maio de 2012

182.


O dia ia já a meio quando ele percebeu que havia deixado um pedaço do coração lá do outro lado da ponte. Pensou que talvez seria bom voltar para trás, atravessar tudo de novo e resgatar o bocadinho que havia perdido. Mas logo de seguida achou que era melhor não, que isso do coração quando se perde uma vez perde-se para sempre e, ainda para mais, não aguentaria outra caminhada. De repente sentiu-se pequenino, cheio de medo de ter perdido também todos os cheiros, todos os livros e todas as pessoas que guardava lá nesse borrão de miocárdio até que se lembrou que alguém podia encontrar-lhe o pedacinho e ir à sua procura, nunca deixando cair os cheiros, os livros e as pessoas que amara. Depois achou que não, que se alguém de facto o encontrasse iria ficar com ele, que hoje em dia as pessoas precisam muito de retalhos para os buracos que levam consigo, dentro do peito, e que o mais certo era servir de adesivo. Talvez pudesse, ainda, quem sabe, ser levado no bico de um pássaro que por lá passara e vira caído no chão um insecto estranho, muito vermelho, muito suculento. E talvez, depois, até pudesse cair em cima de uma nuvem, lá no alto quando o pássaro já cansado de carregar aquele bichinho que lhe parecera comestível o deixara cair. Afinal de contas, isso de carregar cheiros, livros e pessoas não é tarefa fácil. E quando essa possibilidade se lhe aflorou na mente, sorriu e ficou um bocadinho menos preocupado, um bocadinho menos feio e pensou que talvez, às vezes, é bom perder-se um pedaço de coração.

4 comentários:

maria joão moreira disse...

... e estou convencida que esse pedaço de coração perdido acaba sempre por voltar a nós, ou porque o reencontramos quando menos esperavamos, ou porque acaba por nos ser devolvido. Um belíssimo texto, gostei muito!

Anónimo disse...

Não sei muito bem o que dizer, existe este nevoeiro entre nós que me cega a alma e o coração. Por mais que procure as palavras certas não as encontro, sempre que as procuro perco-as, e depois há a incerteza do teu olhar distante. Uma espécie de penso logo existo que neste caso seria um vejo logo existo. Ora, se não te vejo quer dizer que deixaste de existir? Ou então o contrário? Nesta angústia de ver e não ver partilho contigo este poema que me vem à cabeça constantemente e penso ter as palavras que procuro. Ou então apenas tenho vontade de nêsperas. Se estiver enganado pelo menos a imagem é engraçada.

“Um nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece.”

Mario Henrique Leiria

Anónimo disse...

Ó não sei se escapaste à fúria da minha desilusão, pois o teu silêncio foi algo que me custou a engolir. Demasiado extenso, demasiado distante. Não sofri mais a tua ausência porque andei meio adormecido, meio sonambulo, meio morto. Talvez deprimido... Tenho a certeza se alguma vez atravessar um deserto lembrar-me-ei de ti porque és realmente água fresca para a minha alma. O que é que te aconteceu? O que é que te levou para longe e agora te atirou para a terra? Gostava muito de saber, porque as tuas palavras deixam-me numa ânsia infantil de tudo saber, de tudo desvendar. Agora as almofadas... Em tempos vi muitos filmes, em tempos ouvi muita música, agora leio muitos livros, penso demasiado. Para mim sonhar é uma necessidade tal como respirar e esperar... Espero enquanto posso, espero porque posso, apenas espero. E espero porque sonho, caso contrário para que viveriamos nós? Aqui tens a minha almofada do coração: a espera, o segredo mais bem guardado do universo. Poderia dizer-te que a almofada que me ampara é o Mozart que ouço ou então “A Mulher Sentada” de Guillaume Apollinaire, mas não; porque não são almofadas são bengalas.

Anónimo disse...

Esses “limites feios” que se calhar são fronteiras para outros mundos, talvez bonitos. Acho que posso dizer sem hesitar que tens “o sentido absoluto da grandeza” que Breton refere em Arcane 17, tal é essa vontade de abraçar tudo. Sabes imagino-te na praia a apanhar conchas e pedras, e à medida que vais avançado vai descobrindo mais e mais conchas e pedras que tentas apanhar mas como não consegues levar tudo começas a escolher, abandonando umas e levando outras: sentes que te estás a trair, deixando pedaços de ti pelo caminho, pois tudo aquilo era teu. Lentamente a angústia apodera-se de ti por não conseguires levar tudo o queres e por fim largas tudo por simples desespero. Puf! E volta tudo ao início como por magia, inexplicável mas incontornável. Mas da próxima já sabes que não podes levar tudo contigo. Eu não disse que gosto de esperar mas que é reconfortante fazê-lo. Já imaginaste um mundo em que não se podia esperar? Seria um pesadelo viver sempre como se fosse o nosso último dia na terra, nada teria sentido, nem a beleza, nem o amor, nada porque estariamos demasiado preocupados com a nossa pessoa. Esperar é bom porque significa que esperamos por algo ou alguém, quer dizer que existe um futuro diferente, manhãs e tardes que ainda não foram conspurcadas pelo peso do passado e a incerteza do presente. Não tomes isto por um sermão, ok? Estou apenas a partilhar contigo o que penso da vida, com a tua permissão é claro. Não o estaria a fazer se tu me tivesses dito para parar de esperar, ou então um “não, nunca na vida”, isto porque esperar é aborrecido p'a caralho!