quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

273.

 

Imagem


Podíamos dizer com acuidade o modo vermelho

com que se vai tecendo a vida

Encontrando-se o mundo às avessas

como, de resto, sempre esteve

a guerra a doença o jovem 

que se imola a flor encardida

no fim e no começo do anseio

de outra coisa

Penso que os cigarros em jejum

são porventura uma reminiscência

da infância

uma vontade também ela incendida 

de recuperar Éden ou algo de semelhante

ainda claro ainda pronto 

ainda sem vazio ou Queda

O travo que espraiam nos lábios

esse fumo diligente

é modo e figura do coração

que inconsútil 

desbrava a floresta há muito extinta

de um amor verde e luminoso

Ardente sem dúvida 

mas de um fogo reparador 

como aquele que arderia

no ventre de Eva saciada

Em tudo igual e distinto 

ao de Aaron Bushnell


sábado, 27 de maio de 2023

272.


rivesveronique:“ Scène d'intérieurJacques Jean2 novembre 1926,autochrome”


Tudo começa com uma impressão de Agosto;

depois vêm umas mãos 

prontas e precisas

[claro

que mais demoradamente

se passam pelas costas


Mais do que essa candura

talvez a promessa há muito

latindo

ainda que tíbia


Depois julgamos que o amor é e não é

um enredo um tanto tolo

um tanto macerado 


E ainda assim prosseguimos

cientes do que nos apouca

do que nos domestica


E ainda assim


Há sempre a impressão dessas mãos

essa promessa alhures

um relicário no meio da floresta

o sexo reinventado

saciado talvez sempre fremente e efémero 


E ainda assim


O amor, pois, partido em vários bocados

as mesmas narrativas a sua insistência no fio

cansado e triste da memória

nessa paisagem matutada e maturada


As mãos e as costas

uma labuta eterna a nossa fraqueza

depois de Agosto

em não sabermos estar sós


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

271.


arturpastor:
“Série “Paisagens”. Alentejo, décadas de 40/50.
”


A todos os que amo

estendo uma flor branca

A inocência bem pode 

ser o mais letal veneno -

Tenho desfeito entre meus dedos

os caracóis que de meu cabelo

pendiam outrora

Neste país estreito 

acordo sempre com a sensação

de uma guerra fremindo

Ignorá-la é cruel

não a ignorar também

Faço-me Perséfone

mordo a romã com fome

e por vezes com fastio

Procuro a mãe que falha

a mãe que murmureja 

a indistinta placidez da neve

Desejo mais e ao mesmo tempo

coisa nenhuma

coisa nenhuma

coisa nenhuma.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

270.


bookoffixedstars:
“ Banded demoiselles laying eggs on a floating island of aquatic vegetation. Photo by Władysław Strojny (1923 - 1992).
source
”

Amor, devias vir.

Uma árvore é, por vezes, razão suficiente.

Em dias mais oblíquos, a memória da sua seiva

a retinir em nossa pele ainda morena

ainda pronta para a vida,

num Verão possível e perdido.

Mas o amor demora-se, sim, como

reiterando a sua dissonância,

que é a sua forma de ser fugaz cruelmente.

Em certos dias, demora-se o mais

que já esperamos

[sempre.

Éramos frescos, sem dúvida.

Na algibeira havia um pedaço de pão

e uma noz a morder contra a fome.

Havia, sobretudo, a ingenuidade 

dos cães vadios,

do seu latir persistente,

do doce modo como posicionam o seu corpo

apesar de faminto

apesar de gelado.

Eu queria um destino mais belo, sim.

Os rapazes partem para Julho como

para uma grande promessa.

A juventude vai-se deteriorando,

parecendo-se cada vez mais

com um vidro quebrado.

As mãos já não possuem 

virilidade alguma. As tulipas vermelhas

aonde ficamos despenhadas 

como na nossa própria menstruação.

Os rapazes partem ainda, partem sempre.

Amor, devias vir. Devias procurar

o âmago aonde late outra coisa

aonde sou outra coisa

mais afoita a ti e às tuas medidas. 

Mas tu desconheces. E desconhecendo-me,

sem saberes, amas-me menos.

É sempre menos o dia em que acordámos,

mesmo depois da paixão

e do frio aconchegado em dois corpos.

Saber olvidar, por certo.

Dar um passo que não seja em falso.

Observar o vidro

a forma como se quebra

como se quebra

em nossas mãos.

Amor devias vir,

[se não fosse já tarde.





terça-feira, 24 de agosto de 2021

269.

shinjiaratani:
“architecture/sculpture ©SHINJI ARATANI
”


Entre a dúvida e a palavra

acelero como quem se sente capaz

finalmente [

de um despiste

Estar contra os astros significa apenas

que trazemos no sangue uma porção

de nitrato

invariável

dolorosa, sem dúvida

irascível

A salvação não se encontra nos

olhos de alguém

                       [ainda que radicalmente belos

não se encontra num ou outro beijo aceso

não se encontra num certo modo de posicionar

a bacia ou o anelar ou a omoplata

Nem sempre havemos de ter força

às vezes cairemos e o levantar não terá

lugar no momento seguinte

Antes demorará, como se demora a mágoa

na particular cisura do coração

ou a mansa água de um rio antigo.

Não te maldigo, querido. Não te estranho.

A minha pena é sede do nome que me

deram sabendo e não sabendo 

os motivos que o encerram 

que o impelem à substância última

à ruptura advinda da dor

da maresia

de um gesto atrasado ou por completar.

A impressão das tulipas 

a sua vermelhidão enjoativa 

o sorriso que desprendem no jarro

paliativo assassino falacioso

oh, sim, a impressão que ficou

depois do amor igual a essas tulipas

a observar-nos os movimentos 

com a sobranceria de quem olha

alguém desde cima. 

O terrível ângulo, essa fraca forma

de insistir no fúnebre sentido que se tornou

a paixão o seu cavalgar o arquear de umas coxas

outrora prontas para milagres que no fim de contas

terminaram desconhecendo

Ainda não me levanto. Ainda me deixo ficar

um pouco abaixo do solo

na rarefeita paisagem da memória

próxima das raízes das tulipas por arrancar 

da terra

como fetos que se conservem no útero

materno

um pouco abaixo de mim mesma, sim [

um pouco abaixo da palavra e da fé

Mas não te maldigo, querido. Não te estranho.


quinta-feira, 6 de maio de 2021

268.



 Simão,

A linha de comboio parece

de facto

em certos dias

o mais justo destino.

Mas há a andorinha que

apesar de tudo

regressa na Primavera

e o morcego que

na sua rota 

um tanto desvairada

por insectos

valsa ainda à nossa janela

Este poema é para ti

e ainda que fale de morte

fala, sobretudo,

                           [de esperança.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

267.


 


Repara: a casa existe 

como uma memória afiada

desses tempos em que foste

sim, talvez, francamente feliz

mas, sobretudo, e apesar disso, miserável.

Lastimo-me por ti, amiga. 

Estavas fadada a grandes coisas; 

o amor de alguém é um lugar tão difícil,

o poema como uma valsa por terminar,

a lua revelando o que só o açúcar promete.

Mas nada disso te valeu.

E agora, sim, a casa. A casa 

que te recorda a aspereza da iniquidade: o sangue perdido

tão ingloriamente que dá dó, 

o sangue, amiga, que julgaste ser prerrogativa da paixão

e que mais não é senão a fraca inutilidade da juventude. 

Podia ter sido diferente, pensas. Podias não ter quebrado. 

E a casa, o raio da casa, sempre relembrando

placidamente relembrando

a violência, o ciúme, a infâmia. 

Lastimo-me por ti, amiga. 

Tens agora a cabeça posta nas ossadas que ficaram

depois da ruptura

e que são afinal teu mais confortável e tíbio leito.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

266.

tesouradasocialclub:
“louis reith
”



O que está além da minha morte
será uma planta cravada na terra
ou o astro aonde certas crianças vão sorrir.

Vivo-te e amo-te não sem algum atrito
mas este poema não fala disso

não serve à magoa

antes enuncia:

«Sou da tua boca como se sussurrasse um segredo
muito límpido».

Amo-te e vivo-te na ideia sempre pulsante
de um útero que se alimenta em pleno meio-dia;
desses víveres feitos à medida de uma palma da mão
de uma fragata contra o vento.

Amo-te desde longe,
e para longe te levo metido entre meus dentes
por vezes cerrados, por vezes doridos,
outras tantas arrebatados
de te ter beijado uma e outra vez
de te ter beijado eternidade adentro.

Vezes contadas,
Amo-te permanentemente.