sexta-feira, 29 de março de 2013

212.


Deixo pendente a interpretação de tua pele para quando minhas mãos tiverem já dissolvido todas as paixões. Como tudo envenena nestes dias de carvão e tu não estás. Ohh! matar-me de vez em quando para fingir que também tu me morreste. Perdoa-me o desleixo. Tardas. Regressas porém e em teus bolsos sempre trazes o sismo que rebenta dentro de meu entristecer. O que fazer com as prateleiras caídas e todos esses novelos feitos de vozes, angústias, cheiros, tiroteios e ombros misturados uns nos outros, nessa confusão das coisas que uma a uma caem dentro de nós? Retomo-me na ordenação das células; envelheço dentro do meu cansaço. Vasculho-me até à infância que nunca te conheceu, removo-me na comoção de te olhar e para sempre abandono o corpo ao retalho. Ah! quanto desarma doar o coração à reminiscência, abrir-me em fendas e deitar fora os dolorosos hectares de teu tacto. Quantas memórias em minha carteira? Atirar-te para longe e encontrar-te sempre na mala. Deixa-me perder-te no fervor de me esvaziar, deixa que me engane e te coloque junto de antigos trapos, peles que já não mais conheço, velhas solidões e te deite ao lixo. Como tudo envenena nestes dias de carvão e tu não estás. Desajusto-me; sempre me entras pelo desalinho dos gestos - onde menos te espero, onde menos te espero...

                                                                                                                          Margaret, 23 de Março 1981

2 comentários:

Iolanda disse...

"Desajusto-me; sempre me entras pelo desalinho dos gestos - onde menos te espero"... eu não sei, não possuo em mim palavras onde caibam as emoções que me transmites. Que escrita inteligente, requintada, de deixar sem fôlego. E que dor, a de o reconhecer em si e em cada esquina dos seus modos...

Lipincot Surley disse...

Gostava que Margaret descobrisse o que fazer às prateleiras caídas. Fico com a sensação de que ela também gostaria de o descobrir. Desconfio ainda, que se tal acontecesse, ser-lhe-ia mais fácil doar o seu coração à reminiscência (se ela existisse) mas que certamente as memórias guardadas na carteira não seriam tantas e que os dias de carvão passariam a ser os seus preferidos.

*