domingo, 19 de abril de 2015

242.




Este é um poema breve:
Depois do oblíquo estalar da sombra nada sobrará - eis o que nos dói.
Valorosas investiduras executadas como um gesto a menos
a crença sincera e desesperada de se ter uma mão a agarrar-nos a anca
e a dizer, desde lá longe, como um vatícinio,
um enredo, uma falsa partida, a dizer:

«Lutarás uma vez mais contra a grande devastação;
morderás ainda muitos narizes se acreditares em quem mente»

Acenamos que não, que desta vez não seremos mais engolidos nem trincados
como um prato do dia em hora de ponta de almoço;
veementemente dizemos que não, que não a esta mortalha que vai cobrindo nossos corpos
cansados da verticalidade e do pesadelo e da repetição incessante da errância dos pés
nossos corpos cansados das suas bocas cheias de cinza
cuspindo-se como um dia de tempestade em alto mar;
falando de putas e de santas e de mulheres que um dia quiseste para enganar a solidão
ou então que chegaste porventura a verdadeiramente desejar.
Ah, caro amigo, mas este é um poema breve, que importa afinal tudo o mais?
Que importa este sangue quebrado sobre o mundo, esta pele que recorda
a ressaca, a penumbra, a violência, essa ideia falível de um lugar a sul,
bastante a sul do coração.
Rememos então por entre a solubilidade dos dias e das putas e das santas e das mulheres
e das palavras, sobretudo das palavras que ferem que ainda ferem e nos desconcertam as orelhas
relembrando-nos a toda a hora quem, quem por força temos de matar para que o céu não nos desabe em cheio na garganta.
E não, não deixemos mais, não deixemos nunca mais que na ponta dos dedos como um pedaço
pequeno pedaço de vidro atravessado carne adentro,

                                                                                       a memória lateje.


1 comentário:

Anónimo disse...

Um poema furioso, grande velocidade e ritmo. Estonteante.