segunda-feira, 26 de março de 2018

264.





O gosto da cereja entre minhas frias
têmporas é tudo o que resta dos
amantes que foram como agulhas
eficazes metódicos incalculáveis.
Podemos perscrutar o passado
como a um filho morto:
o seu interior os rins a linfa.
Demorarmo-nos, quem sabe,
nas unhas lascadas ou na leve
curvatura do anelar esquerdo;
tudo isso que enregelado
recorda ainda a legitimidade
tão parca do sangue e do afecto.
Podemos executar tal exercício
como a uma oração diária
procurando compreender como
terá sido possível tanta luz e
tanta dor numa mesma estação;
como terá sido possível que
a falibilidade fosse afinal
o mais certo destino da carne.
Vou agora repartindo pelos dias
essa análise minuciosa
e paulatinamente catalogo
pâncreas, pulmões, salitre,
com o desdém próprio de
quem não vive senão para
desvendar os mistérios da sua
memória. Sem o meu medo,
quem é que eu sou? O que
significa este pedaço de
pele como uma alga seca
onde adivinho estar meu coração?
Quero dizer: o que significa
o horizonte já pálido de um
qualquer amor por demais
sádico e tardio?
Eu sou quem tenho mais
a parte indivisível da mágoa
que sempre trago sabendo
e não sabendo porquê.
Eu quero coisas grandiosas
como a felicidade dos astros
ou o riso imperturbável da
criança. Eu anseio mais
do que esta nódoa junto
ao pulsar da terra que é
também minha e assim
entristece na exacta medida
em que amargura meu sangue.
Na realidade, não há muito a fazer:
eu sempre vivo recorrendo ao mundo
como se ele fosse um filho
que por desmazelo ou deleite
alguém deixara morrer à fome.

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