segunda-feira, 24 de outubro de 2011

148.


Às vezes falta-me demasiado ser inteira e não metade. Faltam-me proporções consistentes vezes sem conta mesmo sendo ainda possuidora de duas pernas e de dois braços. Falta-me o acordar de manhã, de cabelos desalinhados, e o sentir que lá fora há um mundo tão irremediavelmente lindo que não deixa hipótese de fuga. Faltam-me também os afagos de alma quando nada mais sei ser senão poeira em tua mão. Creio que me perdi: de momento não passo de porcelana que é carne e coração soldificado de tantos abanões excessivos; de momento não passo de materiais disfuncionais em espaços demasiado pequenos, em músculos demasiado contraídos. O voar é agora bicho perdido no fundo do armário e até mesmo a música aparece - na fragilidade que é o meu eu- enfadonha e pesada, arranhando as paredes, rangendo entre as chapadas no ar. Creio que me perdi. Não sei mais andar sem perfurar o chão, não sei mais respirar sem que a garganta me arda, sem que os olhos me chorem. É necessária poesia e já não há mais quem se importe com palavras. Creio que me perdi. Promete que me vens buscar.
Margaret, 6 de Novembro 1984

6 comentários:

JL disse...

gostei tanto :)

ines disse...

Tantas vezes a fuga se mostra a melhor solução quando o nosso resgate fica pendente, tanto tempo

Lipincot Surley disse...

Quase que consigo sentir o sufoco de Margaret. Ao ver-se como estrutura calcificada e quebradiça. Falta-lhe tanto e o pior é que ela sente, lentamente a maleabilidade do seu ser a perder-se lentamente. Ela devia querer tanto que a fossem buscar! Foram, Maria?

Anónimo disse...

está lindo maria *

Ligações disse...

Continuas a fascinar-me e se tudo isso é dor quero ver-te sofrer, desculpa a sinceridade...
Mas escreves de um modo tão cheio de luz que quase me vejo, quase...

Obrigado por ter o prazer de te ler

Anónimo disse...

É tão terno a forma como me envolvo em ti e nas tuas raízes. És a escritora!