domingo, 23 de novembro de 2014

240.






Sem nada que me reste, encolho os ombros ao ritmo desta sombra
que muito lentamente se alastra pela minha vida.
Zarpam da minha memória os últimos habitantes, afugentados pelo fogo, pela peste, pela fome,
que um dia, surpreendente e sempre novo dia, encontraram no lugar que em mim julgavam fértil.
Abrigo-me por entre vertiginosos escombros, reencontro a besta
que certa manhã me inundou a vida de medo e tumulto e durmo com ela, aceito-a como um filho que alguém teve sem nunca quis ter e abraço-a na fraqueza estúpida de ter perdido tudo e de me achar ainda viva.
Deixo de ter esperança na convalescência desta montanha, minha outrora montanha perene. Montanha gelada. Gelada montanha.
Agora com pernas, terríveis pernas que a afastam progressivamente e cada vez
sempre cada vez mais
de mim e do espaço intercelular onde cultivei horas a fio uma plantação de açúcar para que vivesses melhor.
Provocando o sismo que te viria a rachar, que viria a rachar estes últimos habitantes, digo, assinalei
a data onde meu sangue se jorrou
manchando todo o restante papel do calendário
frouxo
católico
pendurado na porta do frigorífico muito desastradamente, muito despreocupadamente, não fosse ele apenas
e só
um calendário de papel
frouxo
católico.
E entre um dia e outro, não ter tempo para recordar que nos perdemos no hiato do próprio tempo, que a terra se abriu como quem perde a virgindade e essa perda lhe dói para o resto da vida, e essa perda lhe ensanguenta a vida para o resto da vida.
Talvez o futuro nos diga algo mais que estes espelhos, este lugar afastado da fala e até mesmo
do coração
este lugar onde o eco é a voz, e a voz é um nada que pilha e mata inocentes.
Cair na tentação do pecado, os sete supremos, embalando sempre o sono como a uma criança
pensando em mitos, em glória, em batalhas onde não perdemos ninguém.
Não vale a pena calar a música nem os astros nem as coisas que só os gatos sabem e por isso gosto deles
e lhes passo a mão pelo pêlo e o pêlo me limpa os abandonos que entre os dedos
trago sepultados.
Entrego-me ao ofício - cantante, como diria o outro - da revelação
e as noites ferem como dois amigos magoados.

3 comentários:

Iolanda disse...

uma coisa é certa: em todas as vezes que te leio, acabo sempre rendida, sem palavras, absolutamente maravilhada com este ritmo. é tudo uma sombra de fantasia, um véu, imagens a passar-me pela mente como feixes de luz. imagens que não são nítidas mas que transportam um sentido que há muito estivemos à procura, mais do que isso, uma compreensão do que não soubemos exprimir. poderoso

Jessica disse...

Oh Maria, Maria. Soubesses tu as noites em que te venho ler as palavras já amareladas do tempo para matar a saudade de sentir alguma coisa que não doa. Leio-te hoje, nesta mescla de solidão e familiaridade que a madrugada me deixa e que cuido e alimento como se de o filho de alguém se tratasse. Bestas e calendários frouxos como o teu, tenho-os também eu na minha vida, mas já não durmo nem conto os dias. Conto agora histórias de pesar debaixo de um céu que já não conheço e me cheira a inverno o ano todo. E depois leio-te, assim. Tão bonita sem te ver e tão senhora das palavras. E sinto. Sinto tanto Maria, e não dói. Gosto tanto de ti como dos gatos que nos limpam das mãos o que nos magoa.

Anónimo disse...

Mas que descarregamento. Transformas "coisas da vida" (permite-me a falta de objetividade) em textos tão bonitos, e a vida logo se melhora. Quanto mais não seja por saber que pelos teus olhos o sangue pode correr de uma maneira artística, pois pelos meus é só sangue que jorra. E as coisas doem mais quando olhamos menos. Uns olhos emprestados. Talvez seja para isso que serve a poesia.
Maria, belos olhos os teus.