quinta-feira, 28 de maio de 2015
243.
De súbito, o calor. Nada a fazer.
Um dia intemporal, transversal, quase incapaz. Um passo e depois outro. E outro.
Partir para uma ilha ou repartir a memória em vários bocados
cedendo-os por fim como alimento aos peixes. Nada a fazer.
Repara bem: de súbito o longo entardecer,
o canto acelerado da andorinha, a pele incendiada. Ah, o calor.
Ao cabo de tanto tempo, tamanho tempo, tempo circunspecto ou tempo circuncidado,
o que ainda mais me espanta são estes fragmentos de rostos e de lábios
mordendo o sexo mudo das plantas.
Ainda não é tarde. Minha mãe ainda está lá junto à fogueira e eu ainda tenho os
cabelos em desalinho. Alguém ainda diz, rindo, « Mas nada se perde!»
E de algum modo o meu primeiro medo aceso: será a transformação um
processo menos doloroso, verdadeiramente
menos incapacitante do que a perda? Repara com atenção: minha mãe ainda ali está.
Longos anos de tremor de terra, talvez os únicos que mesmo antes e depois
da fome deste calor terminarão intactos, a salvo, no exacto lugar que guardamos o mais longe
possível do nosso nome. Estiveste em viagem como em vertigem e um grito «não! não páres!»
E logo num tom mais baixo, melindroso, «agora que estávamos a chegar tão perto...»
Arfando, reconheço: mil caminhos percorreria na tua cara tapada. Mas de súbito, o céu como um verso antigo; cada noite recordará outra noite, quem não acena não estará por certo vivo.
Repara: ontem foi sempre tarde. Sei que tive fome mas não reparei nisso
porque minha mãe, minha mãe ainda ali está.
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3 comentários:
"Nothing to be done" a célebre repetição de Estragon e Vladimir em "À espera de Godot" volta a ganhar forma desta vez pelas tuas mãos?
Foi esta referência propositada ou fruto do inconsciênte traiçoeiro?
Inconsciente traiçoeiro.
Maria, estás em crescimento exponencial. Fico grato por poder ler-te.
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