terça-feira, 29 de março de 2016

253.




Era uma hora oblíqua, digo:
Procuro encerrar-me inteira no regaço da santíssima fé,
fé fecunda, fé de medonhos braços,
como quem anuncia: «Filho, o importante é ser paciente
apesar destas costas em abrupta perda.»
Era Agosto ou Setembro e na memória o cão ainda late
como que pedindo perdão por um pecado muito sujo,
quando no fundo ambos sabemos, eu sei, que era só da fome,
e que o pecado fora na realidade o termos o olhar atado.
Era uma tarde como outra qualquer, imensa, vasta, e eu chorava
contra a mesquinha lentidão de algumas palavras.
A tua mão, por volta dessa altura, terá então tocado onde eu era ferida
e verde memória de um dia mais estreito, num gesto de caminho
de perturbada obstinação, de animal em contínua fuga
e o que mais relembro é ainda, e sempre, a forma como,
numa noite de roxa violência e encardidos lençóis,
amarfanhados os rostos pranto e miséria adentro,
pronunciámos Deus como a uma pedra contra os lábios.

1 comentário:

Jessica disse...

As tuas palavras podiam santificar o profano. Ler-te é sempre este arrancar o coração ao peito e vê-lo devolvido num par de mãos que vestem vermelho. E não existe medo, nem nojo, nem feio. Existe cru. Ler-te, Maria, é sempre cru. Sempre bom.