terça-feira, 5 de julho de 2016

255.



A perfeita harmonia dos dias 
sucedendo-se um a um: 

escavar terra 
adentro com estas unhas gastas, escavar escavar escavar
até ter nas mãos mais sangue que terra, até ter nas mãos
mais perdão que vontade de matar. E ainda assim, ah!, 
olha só para este mundo, observa o que ele te oferece
os pássaros, as árvores, as magnólias, as portas que servem
tanto para fechar como para entreabrir em tímido gesto de
convite, observa como do ovo se faz galinha ou da galinha
se faz ovo, tacteia o fogo e sente! sente como ele pode ser
árido. Mas nunca te deixes enganar: nada disto existe por ti
nada disto te ama, nada disto fará por te salvar na hora da 
tua morte, tão recatada e sagaz, uma verdadeira mulher
brilhante, impassível, insaciável, como a primeira que
terás tocado, que terás amado com tanta fome e vexame,
ah! a primeira mulher que terás espancado de ciúme 
e cólera, esses instrumentos de cutelaria íntima, a 
mulher que de ter sido tua terá morrido em tuas mãos. 

A perfeita ironia dos dias
sucedendo-se um a um:

escavar terra
adentro com estas unhas gastas, escavar escavar escavar 
e de entre a cal da memória não encontrar antigas inscrições 
mas apenas velhos gestos de culpa e rendição. 

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