Numa noite com Marguerite Yourcenar
ainda impreciso, limpo como uma criança que corresse através do corredor de casa
para reencontrar enfim os braços da mãe.
Não há já muito que possamos fazer, se é que o houve algum dia.
Esperarmo-nos serviu-nos somente à fraqueza, iludindo-nos com essa ideia
de nobreza, que era tão alheia e distante de nós mas que, ah, como parecia nossa
de todas as vezes que esperávamos, cegamente, devotamente, um pelo outro.
Não éramos nobres, Alindh. Não era bela a espera.
Mas nada temas. O tempo circunda-se a si mesmo e olvida tudo o mais.
Eis o seu grande ensinamento: olvidar, olvidar sempre, e estareis a salvo.
Ah, Alindh, eu que te amei com uma boca muito oblíqua, eu que te fiz
as mãos sangrar de tanta rouquidão e imobilidade, eu te digo sem demasiado
pesar: é tarde. E os ombros - quem diria? - não se quebram a mais por isso.
Houve, de facto, um tempo, Alindh, um tempo em que o meu corpo
talvez servisse ao teu amor e aos seus néctares tão alucinantes como
o primeiro dia de Verão que partilhamos; não há mal algum em dizê-lo.
Todavia, é tarde agora. E a mim já não me interessa o movimento da
mão que alcança outra mão, nem a perna que por debaixo da mesa
procura outra perna, nessa avidez perigosamente próxima da verdade.
Ah, mas não digamos palavras grandiosas. Bem sei, Alindh, que este
terá sido sempre o meu maior defeito - a propensão para sacralizar
até a mais comezinha das coisas. Terminar com a boca a arder e o coração
despenhado era o habitual fim dessa aventura de grandeza em que eu incorria,
mormente julgando que por ti, mas no fundo, sempre, e somente, por mim
e pelo meu sadismo. Como vês, Alindh, pouco ou nada teceste nesta teia mortífera
que se tornou o espaço por nós dividido, unido, fixado, o espaço interminável da
rubra nudez dos corpos. É tarde, Alindh. Tudo o que restou foi um par de versos
medíocres com que fomos alimentando a iniquidade. Pois partamos, então. O nunca
é sempre um lugar melhor para quem, como nós, brincara tempos a fio
à loucura e à imortalidade. E não é pelo sol se pôr já que devemos permanecer
um pouco mais e aproveitar a noite que lentamente irrompe do seu sossego e nos
visita, relembrando como pode ser terno o leito dos Homens e sedento e redentor.
Não, Alindh, não há já tempo possível. É melhor que os que vamos deixar se
silenciem muito antes de o fazermos - as palavras, as palavras são amiúde cadelas
ciumentas, vingativas; exímios punhais resvalando aonde fere: quantas menos
para recordar,tanto melhor. Não chores, Alindh. Não te constipes. A vida trará
à pele o exacto aroma do entardecer e tudo se confinará ao mais justo dos sonhos.
Depois da miséria os dias enchem-se sempre de melhores e mais ardilosos sons.
É tarde, Alindh, é tarde. Se olhares os campos repararás como foi já, minuciosamente,
sadiamente, recolhido todo o milho.
1 comentário:
Este poema é incrivelmente belo. Sabes, eu acho sinceramente que todas as pessoas dotadas de alguma inteligência, mais dia menos dia chegam à seguinte conclusão: todos nós acabamos por chegar às mesmas conclusões. Como escreveste um dia (parafraseando a Anaïs Nin): «a obediência à realidade significa uma debilidade no amor», e que conclusão mais incontornável esta. No fim de contas é o Paul Valéry quem tem razão: "nunca ninguém chegou a conhecer com quem dormia". As relações humanas são precisamente esse solipsismo oculto sobre o entusiasmo de ser o contrário.
Mas não é preciso desanimar, temos os amigos, e como dizia o teu amigo: "é preciso redefinir a palavra amor". E é o que vamos fazendo, agora de paraquedas é certo. Outra das conclusões incontornáveis é que algumas coisas são como nuvens: parecem sólidas e confortáveis, mas deitas-te nelas e logo vês que podem ser um saco sem fundo. É preciso o paraquedas que é como quem diz "não me foges realidade".
Beijinho,
Chico
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