sábado, 5 de novembro de 2016

257.




Numa noite com Marguerite Yourcenar

É tarde, Alindh. Foi sempre tarde mesmo quando o dia despontava
ainda impreciso, limpo como uma criança que corresse através do corredor de casa
para reencontrar enfim os braços da mãe.
Não há já muito que possamos fazer, se é que o houve algum dia.
Esperarmo-nos serviu-nos somente à fraqueza, iludindo-nos com essa ideia
de nobreza, que era tão alheia e distante de nós mas que, ah, como parecia nossa
de todas as vezes que esperávamos, cegamente, devotamente, um pelo outro.
Não éramos nobres, Alindh. Não era bela a espera.
Mas nada temas. O tempo circunda-se a si mesmo e olvida tudo o mais.
Eis o seu grande ensinamento: olvidar, olvidar sempre, e estareis a salvo.
Ah, Alindh, eu que te amei com uma boca muito oblíqua, eu que te fiz
as mãos sangrar de tanta rouquidão e imobilidade, eu te digo sem demasiado
pesar: é tarde. E os ombros - quem diria? - não se quebram a mais por isso.
Houve, de facto, um tempo, Alindh, um tempo em que o meu corpo
talvez servisse ao teu amor e aos seus néctares tão alucinantes como
o primeiro dia de Verão que partilhamos; não há mal algum em dizê-lo.
Todavia, é tarde agora. E a mim já não me interessa o movimento da
mão que alcança outra mão, nem a perna que por debaixo da mesa
procura outra perna, nessa avidez perigosamente próxima da verdade.
Ah, mas não digamos palavras grandiosas. Bem sei, Alindh, que este
terá sido sempre o meu maior defeito - a propensão para sacralizar
até a mais comezinha das coisas. Terminar com a boca a arder e o coração
despenhado era o habitual fim dessa aventura de grandeza em que eu incorria,
mormente julgando que por ti, mas no fundo, sempre, e somente, por mim
e pelo meu sadismo. Como vês, Alindh, pouco ou nada teceste nesta teia mortífera
que se tornou o espaço por nós dividido, unido, fixado, o espaço interminável da
rubra nudez dos corpos. É tarde, Alindh. Tudo o que restou foi um par de versos
medíocres com que fomos alimentando a iniquidade. Pois partamos, então. O nunca
é sempre um lugar melhor para quem, como nós, brincara tempos a fio
à loucura e à imortalidade. E não é pelo sol se pôr já que devemos permanecer
um pouco mais e aproveitar a noite que lentamente irrompe do seu sossego e nos
visita, relembrando como pode ser terno o leito dos Homens e sedento e redentor.
Não, Alindh, não há já tempo possível. É melhor que os que vamos deixar se
silenciem muito antes de o fazermos - as palavras, as palavras são amiúde cadelas
ciumentas, vingativas; exímios punhais resvalando aonde fere: quantas menos
para recordar,tanto melhor. Não chores, Alindh. Não te constipes. A vida trará
à pele o exacto aroma do entardecer e tudo se confinará ao mais justo dos sonhos.
Depois da miséria os dias enchem-se sempre de melhores e mais ardilosos sons.
É tarde, Alindh, é tarde. Se olhares os campos repararás como foi já, minuciosamente,
sadiamente, recolhido todo o milho.

1 comentário:

Francisco Campos Lima disse...

Este poema é incrivelmente belo. Sabes, eu acho sinceramente que todas as pessoas dotadas de alguma inteligência, mais dia menos dia chegam à seguinte conclusão: todos nós acabamos por chegar às mesmas conclusões. Como escreveste um dia (parafraseando a Anaïs Nin): «a obediência à realidade significa uma debilidade no amor», e que conclusão mais incontornável esta. No fim de contas é o Paul Valéry quem tem razão: "nunca ninguém chegou a conhecer com quem dormia". As relações humanas são precisamente esse solipsismo oculto sobre o entusiasmo de ser o contrário.
Mas não é preciso desanimar, temos os amigos, e como dizia o teu amigo: "é preciso redefinir a palavra amor". E é o que vamos fazendo, agora de paraquedas é certo. Outra das conclusões incontornáveis é que algumas coisas são como nuvens: parecem sólidas e confortáveis, mas deitas-te nelas e logo vês que podem ser um saco sem fundo. É preciso o paraquedas que é como quem diz "não me foges realidade".

Beijinho,
Chico